terça-feira, 13 de maio de 2014

Bife tártaro cru e picado

O primeiro bife tártaro da vida acaba quase sempre em desilusão: a probabilidade de que tenha sido pedido sem se saber em que realmente consiste (carne crua picada, por vezes com uma gema de ovo também crua) é grande. Ainda para mais, o prato com ligações aos tátaros – povo da Ásia Central que vive, entre outros sítios, na Crimeia – causa riscos para a saúde, pelas bactérias contidas na carne não cozinhada.

Mas a Crimeia, província da Ucrânia, anda com outras preocupações. As suas bases militares foram cercadas por milícias vindas do exterior, a população quer sair de um país e juntar-se a outro. A tensão sobe a cada dia na Ucrânia e isto tem de preocupar-nos sobremaneira, talvez ainda mais que as vírgulas dos défices e as percentagens negativas das dívidas.

O nome Ucrânia sugere-nos um local frio e distante. Mas o maior país europeu não é nem uma coisa nem outra: os verões em Kiev chegam a ser escaldantes, empurrando a população para as praias fluviais do rio Dniepr e para as costas do mar Negro. E a Ucrânia está logo ali tão próxima: partindo de carro do Luxemburgo, por exemplo, chega-se à sua fronteira duas horas antes do que chegaríamos à fronteira portuguesa. Kiev fica mais a oeste que Chipre, e Lviv, a histórica cidade dos Habsburgos, está no mesmo meridiano que Atenas ou Helsínquia.

Vivemos um momento de viragem. Já no domingo a ocupação russa pode ser legitimada por um referendo: na Crimeia, onde Vladimir o Grande converteu a Rússia ao cristianismo no século X, onde Nicolau I perdeu uma guerra de três anos contra as Grandes Potências em 1856, há um outro czar Vladimir em acção. Putin segue uma lógica perigosa, cavalgando o restauro de um orgulho nacionalista ferido, explorando a inacção e divisão europeias – um filme já visto antes na História, com resultados terríveis…

O resultado do referendo na Crimeia não está em questão: os seus habitantes vão escolher abandonar a Ucrânia e ser “reintegrados” na Rússia. A questão é o que vai acontecer no dia seguinte. Podemos aceitar esta consulta popular como justa e legítima? Se respondermos que sim estaremos a ouvir a população da região em questão, mas também a validar a lei do mais forte contra o direito internacional – e vários Estados europeus, entre eles a Espanha ou a Bélgica, ficarão também um passo mais próximos do desmembramento. Mas se os europeus seguirem os seus princípios, recusando o expansionismo russo (em troca do arsenal nuclear do país, a Rússia comprometeu-se a “respeitar o território ucraniano”, num tratado assinado há apenas 20 anos), então será necessário decidir o que fazer em seguida, sabendo que nem um único europeu tem qualquer vontade de lutar pela e na Crimeia – e logo, o cenário mais radical, uma guerra contra a Rússia, está fora de questão.

E se não estivesse? Há vários países europeus em pânico neste momento perante a possibilidade de uma invasão russa – a Polónia, a Roménia e sobretudo os três bálticos, Estónia, Letónia e Lituânia, que assistem à concentração de tropas junto às suas fronteiras e contam, todos eles, com importantes minorias russófonas prontas a ser “resgatadas” pelas milícias de Moscovo. Todos estes Estados do leste são membros da NATO e em alturas como esta intensifica-se sempre a conversa à volta do famigerado artigo 5.º do tratado – um ataque externo a um dos membros será considerado como um ataque a todos os outros. Claro que os líderes democráticos dos nossos dias nunca levariam a situação a tal ponto; mas a tensão ainda vai continuar a escalar antes de começar a descer. Da terra dos tártaros nem só o bife é perigoso para a saúde.

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