O
primeiro bife tártaro da vida acaba quase sempre em desilusão: a probabilidade
de que tenha sido pedido sem se saber em que realmente consiste (carne crua
picada, por vezes com uma gema de ovo também crua) é grande. Ainda para mais, o
prato com ligações aos tátaros – povo da Ásia Central que vive, entre outros
sítios, na Crimeia – causa riscos para a saúde, pelas bactérias contidas na
carne não cozinhada.
Mas a
Crimeia, província da Ucrânia, anda com outras preocupações. As suas bases
militares foram cercadas por milícias vindas do exterior, a população quer sair
de um país e juntar-se a outro. A tensão sobe a cada dia na Ucrânia e isto tem
de preocupar-nos sobremaneira, talvez ainda mais que as vírgulas dos défices e as
percentagens negativas das dívidas.
O nome
Ucrânia sugere-nos um local frio e distante. Mas o maior país europeu não é nem
uma coisa nem outra: os verões em Kiev chegam a ser escaldantes, empurrando a
população para as praias fluviais do rio Dniepr e para as costas do mar Negro. E
a Ucrânia está logo ali tão próxima: partindo de carro do Luxemburgo, por
exemplo, chega-se à sua fronteira duas horas antes do que chegaríamos à
fronteira portuguesa. Kiev fica mais a oeste que Chipre, e Lviv, a histórica
cidade dos Habsburgos, está no mesmo meridiano que Atenas ou Helsínquia.
Vivemos
um momento de viragem. Já no domingo a ocupação russa pode ser legitimada por
um referendo: na Crimeia, onde Vladimir o Grande converteu a Rússia ao
cristianismo no século X, onde Nicolau I perdeu uma guerra de três anos contra
as Grandes Potências em 1856, há um outro czar Vladimir em acção. Putin segue
uma lógica perigosa, cavalgando o restauro de um orgulho nacionalista ferido,
explorando a inacção e divisão europeias – um filme já visto antes na História,
com resultados terríveis…
O
resultado do referendo na Crimeia não está em questão: os seus habitantes vão
escolher abandonar a Ucrânia e ser “reintegrados” na Rússia. A questão é o que
vai acontecer no dia seguinte. Podemos aceitar esta consulta popular como justa
e legítima? Se respondermos que sim estaremos a ouvir a população da região em
questão, mas também a validar a lei do mais forte contra o direito
internacional – e vários Estados europeus, entre eles a Espanha ou a Bélgica,
ficarão também um passo mais próximos do desmembramento. Mas se os europeus
seguirem os seus princípios, recusando o expansionismo russo (em troca do
arsenal nuclear do país, a Rússia comprometeu-se a “respeitar o território
ucraniano”, num tratado assinado há apenas 20 anos), então será necessário
decidir o que fazer em seguida, sabendo que nem um único europeu tem qualquer vontade
de lutar pela e na Crimeia – e logo, o cenário mais radical, uma guerra contra
a Rússia, está fora de questão.
E se não
estivesse? Há vários países europeus em pânico neste momento perante a
possibilidade de uma invasão russa – a Polónia, a Roménia e sobretudo os três
bálticos, Estónia, Letónia e Lituânia, que assistem à concentração de tropas
junto às suas fronteiras e contam, todos eles, com importantes minorias
russófonas prontas a ser “resgatadas” pelas milícias de Moscovo. Todos estes Estados
do leste são membros da NATO e em alturas como esta intensifica-se sempre a
conversa à volta do famigerado artigo 5.º do tratado – um ataque externo a um
dos membros será considerado como um ataque a todos os outros. Claro que os
líderes democráticos dos nossos dias nunca levariam a situação a tal ponto; mas
a tensão ainda vai continuar a escalar antes de começar a descer. Da terra dos
tártaros nem só o bife é perigoso para a saúde.
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