terça-feira, 13 de maio de 2014

O saudosista


Ao ser empossado primeiro-ministro em 2002, Durão Barroso recebeu um elogio público da sua esposa, que o comparou a um cherne (um peixe que habitualmente lidera o seu ecossistema). Claro que a alcunha pegou em Portugal. Mas em Bruxelas, após dez anos como presidente da Comissão Europeia e devido a outras qualidades políticas que não a liderança, o agora denominado José Manuel Barroso ganhou outro cognome: “o camaleão”. Um animal que muda de cor para melhor se adaptar – e confundir com – o ambiente em que está inserido.

Esta semana, o ainda presidente da Comissão (que ainda não desvendou qual será o próximo passo da sua carreira política) foi a Lisboa e, durante uma cerimónia em que entregou um prémio europeu ao seu antigo liceu, declarou que “antes do 25 de Abril de 1974, e apesar de algumas liberdades cortadas, havia na escola uma cultura de mérito, exigência, rigor, disciplina e trabalho".

Sabendo que este é o mesmíssimo Barroso que, nos anos da brasa de 1974 e 1975, bradava contra as medidas “anti-operárias que não eram mais que o reflexo da crise do sistema do ensino burguês” (o vídeo está no youtube), já compreendemos um pouco do porquê da nova alcunha. Mas enfim, Barroso nos seus tempos de extrema-esquerda era um jovem; tem direito a mudar de opinião. Pelo contrário, o político tão experiente e de alto perfil em que se tornou tinha obrigação de saber: que na escola do Estado Novo, o “mérito” era determinado pela quantidade de dinheiro dos papás – se fosse pouco, o menino e sobretudo a menina não estudariam, nem como todo o mérito do mundo; que a “exigência” era do aluno ser obediente, submisso, um robot cordato programado para decorar todos os rios de Moçambique ou os órgãos do corpo humano (menos os do sistema reprodutor…); que o “rigor” era exercido sobre quem tinha a imprudência de ter ideias perigosas, e quem fosse de “boas famílias” obtinha notas altas com menos esforço; que a “disciplina” se baseava nas reguadas e na opressão formatadora da consciência; que o “trabalho” era pouco e de má qualidade – o Portugalinho de antes do 25 de Abril era um país de analfabetismo e não consta que mesmo a pequena minoria que podia continuar a sua carreira académica se destacasse, por exemplo, em rankings internacionais de educação (a posição actual do país neste item é incomensuravelmente melhor).

Claro que Durão Barroso sabe tudo isto. Apenas considera que a melhor cor é a do populismo, julgando que os portugueses querem ouvir uma versão do estafado “no meu tempo é que era bom, e estes putos de hoje em dia não aprendem nada”. Qualquer um que conheça minimamente a realidade escolar sabe que essa ideia não tem qualquer ligação com a realidade – mas quem sabe, talvez dê votos.

E afinal o mais chocante até está logo no início da frase: “apesar de algumas liberdades cortadas…”. Sim, uma ninharia. Bastava não se ter ideias, ou opinião, nem decisão, nem independência, bastava ser-se um passivo carneiro do regime, e as pessoas ficavam ali logo prontas a receber toda aquela cultura de mérito e disciplina. Aliás basta olhar para as elites que se formaram então, elas fizeram de Portugal o caso de sucesso em que o país se tornou hoje…

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