terça-feira, 13 de maio de 2014

Cavalo de Tróia colado ao pára-brisas


O número de pessoas que decidem cometer um “suicídio facebook” não pára de aumentar. Claro, trata-se apenas de um nome dramático para a decisão individual de deixar de gastar tempo a olhar para a mais conhecida rede social – e muitas vezes, essa decisão é motivada por preocupações ligadas à própria privacidade, num desejo (vão) de evitar que a nossa vida esteja toda em linha, disponível ao alcance de um clique a quem quiser pagar pelos nossos dados (e muitíssimas empresas e governos fazem-no).

Quem diz facebook diz Google, Apple, Microsoft ou Yahoo; são tantos os escândalos relacionados com o uso ilegal, ganancioso, abusivo e/ou simplesmente desleixado que os gigantes globais da comunicação eletrónica fazem dos nossos dados, fotos, textos, correios e tudo o resto, que cada vez mais pessoas decidem que é tempo de dizer adeus à ditadura em linha e tentar viver sem contactos com estas companhias. Escusado será dizer que é tarefa dificíl – uma vida activa sem smartphone e computador/tablet começa a tornar-se complicada. E o esforço será provavelmente inglório...

Recuemos até 2011. A Apple procura desesperadamente limitar os danos à reputação da marca ao descobrir-se que a empresa não apenas armazena todas as localizações dos seus clientes através dos seus iPhones, como também as disponibiliza a terceiros. A empresa assegura “os dados são anónimos e não podem ser ligados a um utilizador específico” – mais tarde também se comprova que tal é mentira. Entretanto, a TomTom, empresa dos Países Baixos que construiu um império baseado em pequenos GPS para usar dentro do carro, descobre uma forma fácil de ganhar dinheiro: vender a localização constante e, mais importante ainda, a velocidade a que se deslocam os incautos que compraram os seus GPS à... polícia de trânsito. Que se apressa naturalmente a colocar radares fixos e móveis nos locais que a TomTom indica. Esta ainda tem mais um negócio para fazer: vender aos ingénuos automobilistas actualizações dos mapas com a posição aproximada dos novos radares que a própria empresa incentivou. Note-se, radares que não foram posicionados nos locais onde a taxa de ocorrência de acidentes é mais elevada (como seria o caso se mais segurança fosse o objectivo); foram-no sim nos trechos onde, mesmo que isso não acarretasse problemas, era possível andar mais rápido em relação ao limite (ou seja, nos locais mais rentáveis para os cofres da polícia). Foram anos de vacas gordas, carros rápidos e donuts com todo o tipo de coberturas para a polícia neerlandesa. Até que em Abril de 2011 a imprensa descobriu...
 
Perante a fúria dos horrorizados clientes, atraiçoados por aquele inofensivo aparelho colorido colado ao pára-brisas do carro, a TomTom pediu desculpa. “Não sabíamos que os dados iam ser usados para caçar os nossos clientes, mas agora sabemos que eles não gostam disso”, disse o administrador Goddijn, sem lágrimas de crocodilo. Imediatamente a seguir e durante dois anos, quase pareceu que ser vil e ganancioso teria castigo, pois as vendas, os lucros e a cotação da empresa caíram a pique. Mas a memória é curta e 2013, com Snowden, trouxe-nos a banalização da espionagem electrónica a qualquer momento. Num mundo em que o governo americano pode saber do que falei ontem com a minha namorada ao telefone, aumentar as multas por excesso de velocidade parece quase trivial, amador. Os cavalos de Tróia voltaram calmamente aos pára-brisas e aos nossos bolsos.

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