terça-feira, 13 de maio de 2014

Infidelidades

O ano é 1993. O local é a SIC, a primeira televisão privada em Portugal, à época recém-nascida. José Pacheco Pereira, então um comentador que mantinha algum crédito, comentava o panorama político do mundo ocidental – onde, tal como agora, se verificava uma esmagadora maioria de governos conservadores e neoliberais. Referindo-se ao novo e jovem presidente dos EUA, Pacheco troçava do futuro sem remissão da Esquerda com um soundbite que pegou: tudo não passaria de um efémero “orgasmo clintoniano”. O que veio a seguir é mais conhecido: Clinton acabou por presidir a um período de oito anos de prosperidade crescente e ininterrupta nos EUA e na Europa em geral, e deixou o seu nome na História como um dos últimos grandes líderes políticos – mas também como alguém que não era propriamente fiel.

Já sabemos que a História se repete sempre, e da segunda vez como farsa: vinte anos depois, não seria difícil estabelecer o paralelismo com a carreira de François Hollande, eleito Presidente em França com a missão – e mais do que isso, a promessa – de fazer virar a agulha do “pensamento único económico” vigente na Europa, repleto de opções que contribuíram para esta crise e para o seu arrastamento sem fim à vista, seis anos após o seu início. Seis longos anos, em comparação com os menos de quatro que custou à França (por exemplo) regressar ao crescimento económico após a Grande Depressão dos anos 30.

Hollande repete Clinton no que diz respeito às “amantes de Estado” – o Presidente comete infidelidades conjugais e os seus assessores protegem-no; os de Clinton avisavam-no quando Hillary estava por perto, os de Hollande conduzem-no de mota até a um pied-à-terre na rue du Cirque, a dois passos do Eliseu, onde o presidente emula as aventuras com actrizes dos seus antecessores. A política de relançamento económico, a Europa... a fidelidade? Todas atropeladas pelas rodas da mota.
Hollande teve um assomo. Convocou todos para uma grande conferência de imprensa, não para falar sobre a sua companheira internada num hospital, mas para nos avisar que vai atraiçoar também os seus princípios sociológicos e a sua base eleitoral aplicando em força as mesmíssimas políticas austeritárias que o seu rival Sarkozy aplicaria, e que a sua orientadora alemã, a chanceler Merkel, lhe dita ao ouvido: as empresas (não os indivíduos) vão obter uma redução de impostos que será paga com “cortes na despesa do Estado” (não especificados) até porque “é absolutamente necessário conter o défice” e “agir na economia do lado da oferta, porque a oferta vai criar a procura”. Isto numa altura em já são evidências que a) a austeridade está a destruir as economias muito para além do razoável, sem as reformar e b) o que está a travar o crescimento económico da França, como aliás o admitem os seus empresários com imensa capacidade instalada e não utilizada, é a debilidade da procura. Sem dinheiro, ninguém compra. E se mais provas fossem necessárias, basta olhar para uma inflação que ameaça tornar-se em deflação, de tão baixa.

Hollande, o infiel, anda a copiar o presidente errado: quem lidou com a economia do lado da oferta, desregulando e criando as bases para o colapso do sistema que vivemos hoje, não foi Clinton: foi Reagan. E se é para aplicar a velha e errada receita, os votantes preferirão sempre o original neoliberal à pálida cópia cor-de-rosa (juro que não é uma piada ao tipo de revistas que Hollande faz vender).

Sem comentários:

Enviar um comentário