terça-feira, 13 de maio de 2014

Terra dos Fogos

Após uma viagem de pesadelo em que teve de esperar seis meses ancorado numa baía pelo fim do rigoroso inverno e ainda enfrentar dois motins à sua autoridade, Magalhães ultrapassou o rio da Prata e rumou ao sul, convicto de encontrar a mítica passagem para o Pacífico. Quando atingiu um arquipélago que lhe permitiu finalmente começar a navegar para oeste, pelo estreito que hoje leva o seu nome e faz a junção dos dois grandes oceanos, o nortenho Fernão, Fernom na pronúncia mais correcta, viu ao longe, em terra, dezenas de fogueiras. Escaldado, logo receou que os indígenas preparassem uma emboscada à sua expedição. Na verdade, os Yaghan eram pacíficos, mas o nome de “Terra dos Fumos” pegou – mais tarde, e porque o marketing não é invenção recente, o nome seria alterado para Terra dos Fogos e finalmente para Terra do Fogo.

“Terra dos Fogos” é também um dos capítulos de Gomorra – o corajoso livro de Roberto Saviano sobre a mafia napolitana, a Camorra, que deu também origem a um aclamado filme. O título do livro de 2007 é inspirado no texto anti-mafia de um padre da região que terminava com o apelo claro “É tempo de deixarmos de viver nesta Gomorra”; o padre foi assassinado pela mafia pouco depois. Gomorra, o livro, fala-nos dos negócios do crime organizado numa perspectiva ora pessoal, ora jornalística, ora filosófica, naquilo que já foi descrito como um ONNI – Objecto Narrativo Não Identificado – cujo objectivo primordial é obter uma reacção do leitor. E as reacções não se fizeram esperar, dado que Saviano vendeu milhões de exemplares do seu livro e encabeçou várias listas globais das obras mais importantes dos últimos anos, isto enquanto recebia repetidas ameaças de morte vindas da própria Camorra.

“Terra dos Fogos” é sobre uma região da Campânia, uma histórica parte da Europa, onde se queimam lixos de forma tão permanente quanto ilegal. A mafia paraliza os sistemas existentes de recolha e tratamento de resíduos domésticos e industriais; há muito dinheiro para ser ganho com o lixo, e é exactamente essa a única preocupação do crime organizado. Uma investigação recente calculava que uma tonelada de lixo industrial renderia 30 milhões de euros à mafia, que só tem de se livrar dele como se fosse um acidente. Toneladas de resíduos são assim queimadas “acidentalmente” a céu aberto, libertando constantemente para a atmosfera e o solo substâncias mortais como dioxinas ou pior. Os resultados são estarrecedores. Nenhum italiano arrisca comprar produtos agrícolas ou da pecuária que sejam oriundos da Campânia (alguns produtos referem fraudulentamente outras origens por causa disto), e depois de o Japão ter descoberto leite de búfala contaminado, as vendas caíram a pique em todo o mundo. Mas isso nem é nada comparado com a taxa de incidência de alguns cancros, ali o dobro do verificado no resto da Itália. Um facto que só vem credibilizar o arrepiante nome pelo qual é conhecida a área, com mais de 200 lixeiras ilegais, delimitada pelas localidades de Nola, Marigliano e Acerra – o “triângulo da morte”.

Dizer que há aqui um problema é um eufemismo. O problema é evidente, brutal, premente, permanente – e arrasta-se há décadas, sem que os poderes públicos italianos ou europeus o consigam ou queiram sequer atenuar. Tal não pode ser tolerável. E se o leitor pensa que isto não o afecta porque não vive no sul da Itália, responda só para si – consegue garantir que não é a mafia quem gere os resíduos da cidade onde vive? É que eu não consigo.

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