Parece
que todos os jornais tinham preparado os seus obituários para Gabriel García
Marquez (como imagino que eles também estejam preparados para o seu amigo Fidel
Castro – a diferença é que este último se tem recusado teimosamente a morrer). García
Marquez, o enorme escritor colombiano, tinha 87 anos, estava fisicamente
decadente e enfermo. Na quinta-feira de Páscoa, o mago apagou-se.
Eu não
tinha preparado nenhum obituário. Nunca podia imaginar que GGM, ou “Gabito” como
lhe chamava sempre o seu irmão Jaime, não fosse eterno, como se o autor fora
uma personagem real dos seus teatros mágicos em forma de romance. Sublevado
pelos seus mundos pintados a cores tão vivas que chegam a surreais, encantado
pelas tramas entrelaçadas dos seus romances que se desenrolam em lugares onde
nunca estive e que no entanto fazem parte integrante da minha imaginação e das
minhas memórias, eu não vi os sinais inequívocos que apontavam para o fim físico
do último génio da literatura. Qual Santiago Nasar, que em “Crónica de uma
morte anunciada” (a dele próprio) também se recusa a ver todos os indícios que
apontam para o seu fim enquanto toda a cidade já o sabe de antemão, também eu
assisto ao desenlace fatal sem realizar nenhuma das acções que tinha desejado –
tal como escrever ao Mestre, ou visitar a sua Colômbia natal para melhor
compreender o “realismo mágico” dos seus livros.
Para
definir “realismo mágico” (uma expressão que considerava enganadora, porque
para GGM tudo o que escrevia se baseava na realidade), o escritor jornalista recordar-se-ia
das histórias fantásticas da avó Tranquilina, um oráculo fantasmagórico e
supersticioso; ou da descoberta da obra do então recentemente desaparecido
Kafka, cuja “Metamorfose” começa com um homem que acorda e se vê repentinamente
transformado em insecto. É da fantasia realista que parte a aclamada obra
romanesca do Nobel da Literatura de 1982, e estou de acordo com Miguel Esteves
Cardoso quando este diz que é quase uma injustiça comparar GGM com Cervantes –
afinal, “Cem anos de solidão” é muito melhor que “D. Quixote”.
Para mim,
no entanto, García Marquez é mais importante como jornalista escritor. O Mestre
dizia que “a reportagem é um conto completo” e no seu jornalismo, feito de
imaginação e honestidade (sim, é possível tudo conjugar, mas é preciso ser
Gabriel García Marquez para fazê-lo), aplica aquilo em que acredita. Tal como
nos seus romances, as suas reportagens dão-nos um argumento e também recriam um
novo universo. O entorno ajuda a explicar como se chegou onde se chegou, de
forma minuciosa, lógica talvez, mas não menos fantástica por isso; a diferença
para o jornalismo robótico, meramente tarefeiro, que tomou conta das redacções
dos media é gritante. Um bom exemplo é o da reportagem sobre a visita clandestina
ao Chile-de-Pinochet do realizador exilado Miguel Littin. O cerne da notícia é
evidente – um opositor de renome arrisca prisão e tortura ao regressar ao seu
país em ditadura – mas García Marquez escolhe contar-nos situações assombrosas
para melhor nos demonstrar o que está em jogo e ilustrar os demónios interiores
da personagem: por exemplo que Littin é obrigado a cortar a barba para se
disfarçar, mas considera que a sua personalidade desaparece juntamente com a
barba – e nunca chega a aceitar a sua nova cara, nem consegue que ela seja
aceite pela sua família ou amigos. A reportagem é comovente.
Tenho
pena que García Marquez não tenha sido enviado como jornalista a Portugal em
Abril de 1974. A nossa revolução fascinava-o, como o fascinavam todas as
histórias de sublevação dos perdedores contra as injustiças. Até por isso a
morte de Gabito estava anunciada – este mundo encerra cada vez menos histórias
dessas.
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