terça-feira, 13 de maio de 2014

Crónica de uma morte anunciada


Parece que todos os jornais tinham preparado os seus obituários para Gabriel García Marquez (como imagino que eles também estejam preparados para o seu amigo Fidel Castro – a diferença é que este último se tem recusado teimosamente a morrer). García Marquez, o enorme escritor colombiano, tinha 87 anos, estava fisicamente decadente e enfermo. Na quinta-feira de Páscoa, o mago apagou-se.


Eu não tinha preparado nenhum obituário. Nunca podia imaginar que GGM, ou “Gabito” como lhe chamava sempre o seu irmão Jaime, não fosse eterno, como se o autor fora uma personagem real dos seus teatros mágicos em forma de romance. Sublevado pelos seus mundos pintados a cores tão vivas que chegam a surreais, encantado pelas tramas entrelaçadas dos seus romances que se desenrolam em lugares onde nunca estive e que no entanto fazem parte integrante da minha imaginação e das minhas memórias, eu não vi os sinais inequívocos que apontavam para o fim físico do último génio da literatura. Qual Santiago Nasar, que em “Crónica de uma morte anunciada” (a dele próprio) também se recusa a ver todos os indícios que apontam para o seu fim enquanto toda a cidade já o sabe de antemão, também eu assisto ao desenlace fatal sem realizar nenhuma das acções que tinha desejado – tal como escrever ao Mestre, ou visitar a sua Colômbia natal para melhor compreender o “realismo mágico” dos seus livros.

Para definir “realismo mágico” (uma expressão que considerava enganadora, porque para GGM tudo o que escrevia se baseava na realidade), o escritor jornalista recordar-se-ia das histórias fantásticas da avó Tranquilina, um oráculo fantasmagórico e supersticioso; ou da descoberta da obra do então recentemente desaparecido Kafka, cuja “Metamorfose” começa com um homem que acorda e se vê repentinamente transformado em insecto. É da fantasia realista que parte a aclamada obra romanesca do Nobel da Literatura de 1982, e estou de acordo com Miguel Esteves Cardoso quando este diz que é quase uma injustiça comparar GGM com Cervantes – afinal, “Cem anos de solidão” é muito melhor que “D. Quixote”.

Para mim, no entanto, García Marquez é mais importante como jornalista escritor. O Mestre dizia que “a reportagem é um conto completo” e no seu jornalismo, feito de imaginação e honestidade (sim, é possível tudo conjugar, mas é preciso ser Gabriel García Marquez para fazê-lo), aplica aquilo em que acredita. Tal como nos seus romances, as suas reportagens dão-nos um argumento e também recriam um novo universo. O entorno ajuda a explicar como se chegou onde se chegou, de forma minuciosa, lógica talvez, mas não menos fantástica por isso; a diferença para o jornalismo robótico, meramente tarefeiro, que tomou conta das redacções dos media é gritante. Um bom exemplo é o da reportagem sobre a visita clandestina ao Chile-de-Pinochet do realizador exilado Miguel Littin. O cerne da notícia é evidente – um opositor de renome arrisca prisão e tortura ao regressar ao seu país em ditadura – mas García Marquez escolhe contar-nos situações assombrosas para melhor nos demonstrar o que está em jogo e ilustrar os demónios interiores da personagem: por exemplo que Littin é obrigado a cortar a barba para se disfarçar, mas considera que a sua personalidade desaparece juntamente com a barba – e nunca chega a aceitar a sua nova cara, nem consegue que ela seja aceite pela sua família ou amigos. A reportagem é comovente.

Tenho pena que García Marquez não tenha sido enviado como jornalista a Portugal em Abril de 1974. A nossa revolução fascinava-o, como o fascinavam todas as histórias de sublevação dos perdedores contra as injustiças. Até por isso a morte de Gabito estava anunciada – este mundo encerra cada vez menos histórias dessas.

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