O que aconteceu na Ucrânia? Metade da população do país não hesitará em utilizar a palavra “revolução”. A outra metade, no entanto, preferirá descrevê-lo como um “golpe de Estado”. E logo aqui é possível compreender quão profundo é o problema.
O presidente pró-russo da Ucrânia, Ianukovitch, jogou o seu tudo por tudo lançando a polícia de choque contra os manifestantes há semanas congelados em Maidan. Após umas falsas tréguas apenas destinadas a aumentar o efeito surpresa, as forças da ordem – ou da repressão, consoante o ponto de vista – avançaram com ordens claras de limpar a praça, desertificando-a de indesejáveis pró-europeus, custasse o que custasse. E a morte saiu à rua em Kiev. Homens baleados à queima-roupa, queimados, pais e filhos batidos sem dó nem piedade. O regime democraticamente eleito a agarrar-se sangrentamente ao poder, esmagando a justa revolta dos seus próprios cidadãos.
Depois disto, os acontecimentos sucederam-se ao ritmo de uma verdadeira revolução: estonteantemente rápido. Os acantonados da praça Maidan não só resistiram como ripostaram às forças do regime, acabando por vencer, de certa forma, a batalha. (Claro que ajuda imenso quando os manifestantes não são propriamente do tipo de usar flores no cabelo e sussurrar “faz amor e não a guerra”; quem surgiu nos últimos tempos a liderar uma insurreição que tinha começado por ser pacífica foi uma organização paramilitar extremista denominada Sector Direito, que usa símbolos parecidos com suásticas.) Repentinamente, no sábado, o regime de Ianukovitch desapareceu para parte incerta; há um mandado de captura sobre o ex-presidente (repudiado até pelo seu próprio partido), e a sua luxuosa mansão é agora atracção turística. Os novos líderes do país são
tendencialmente mais nacionalistas/pró-europeus (o que é também uma forma de dizer anti-russos, como comprova o primeiro decreto emanado do novo Parlamento que revoga o estatuto do russo como língua oficial), e são quase os mesmos que os antigos líderes do país pré-Ianukovitch que tinham protagonizado a Revolução Laranja de 2004 feita então contra… Ianukovitch, numa confusa alternância de moscardos que não muda nada do essencial: a Ucrânia é um país imerso na corrupção, completamente refém de meia-dúzia de oligarcas operando nas margens da lei que controlam os poderes económico e político (também foram estes quem, com receio das sanções europeias e percebendo que o presidente se tinha tornado insustentável, o deixaram rapidamente cair), e perto da bancarrota. O maior país exclusivamente europeu é um país adiado, sem reformas estruturais, que viu a vizinha e amiga Polónia passar de uma situação ainda pior que a sua a ter, hoje, o triplo do PIB per capita que a Ucrânia obtém, tudo em menos de vinte anos.
É contra esta realidade que os ucranianos se insurgem, mais do que contra a Rússia, que representa tão-somente um símbolo e uma força pelo status quo. A Europa, pelo contrário, constitui um ideal de valores com um poder de atracção formidável – tanto que pela primeira vez na História, muitos se mostraram dispostos a arriscar ali a vida para defender a bandeira azul com estrelas douradas da União Europeia. Ignoremos a ironia de que poucos daqueles que já são cidadãos da UE fariam o mesmo; agora já não poderemos mais ignorar que os ucranianos são tão europeus como nós.
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