terça-feira, 13 de maio de 2014

Os “privilegiados”

Há histórias que tanto dão para rir como para chorar. Há duas semanas li neste mesmo jornal algo assim, contando como um anúncio de emprego publicado por uma associação humanitária serviu de arma de arremesso político para um partido da direita populista. O crime do anúncio? Pedir que a pessoa a contratar dominasse a língua portuguesa.

O ADR, o tal partido, fez a sua previsível chinfrineira pavloviana no Parlamento luxemburguês, obrigando o ministro da tutela a gastar algum do seu tempo (pago pelo erário público) a declarar o óbvio, ou seja, que as associações sem fins lucrativos devem estar habilitadas a responder às necessidades dos seus utentes e devem ser acessíveis aos mesmos – essa acessibilidade pressupõe uma comunicação efectiva. Uma forma legalista de dizer o que qualquer pessoa que já tenha precisado de trabalhar sabe: são necessárias cada vez mais competências em diferentes áreas para se poder ser contratado, a concorrência é cada vez mais forte, os empregos confortáveis e bem pagos são cada vez mais difíceis de encontrar. Talvez eles ainda existam na política e pouco mais…

Afirma o ADR que um anúncio que exija português é “discriminatório”. Sou forçado a concordar: discrimina entre aqueles que servem para a função de auxílio a jovens carenciados e os que não servem. É para isso aliás que servem todos os processos de recrutamento, ou os testes na escola: discriminar entre os que sabem e os que não sabem. E numa economia em que 25% dos consumidores falam ou pelo menos entendem português, é evidente que esta é uma competência valorizada pelo mercado, por muitas peneiras demagógicas que sejam usadas para tapar o sol.

O toque risível, esse, é emprestado pela secretária-geral do partido e que é também candidata às eleições europeias. “Não queremos que isto contamine o Estado para que este não comece a contratar pessoas que não falam as línguas oficiais. Há muitos velhinhos que são cuidados por enfermeiros que só falam francês. A língua da integração é o luxemburguês. E os portugueses são uns privilegiados” são as ideias fortes da sua lengalenga. A particularidade, claro, é que a senhora em questão se chama Liliana Miranda e é, ela própria, portuguesa.

Cara Liliana, deixe-me falar-lhe directamente: falar português, a sexta língua mais falada no nosso planeta (e, subjectivamente, a mais bela), não significa não saber falar luxemburguês, um dialecto tornado língua há apenas 30 anos e que é falado por menos pessoas que o mingrélio ou o frísio (são outras línguas europeias, o que pode dar jeito saber se for eleita para o Parlamento em Estrasburgo). Como sabe, alguém que só fale luxemburguês ficará sempre cingido a uma vida dentro de um pequeno território perdido na Europa central, “integrado” mas limitado, possivelmente sem outra opção na vida que não a de cuidar de velhinhos mimados com altíssimas reformas - que só podem existir porque há muitos “privilegiados” portugueses neste pequeno país a pagar impostos, contribuições sociais e rendas exorbitantes.

Liliana: os portugueses não são uns privilegiados. Posso assegurar-lhe que a esmagadora maioria passa grande parte da sua vida a trabalhar no duro, e tudo para obter alguns pequenos confortos materiais como alimentação e vestuário (um privilégio em relação à miséria, é certo). São as mesmas pessoas que constroem e limpam as tais casas de rendas altíssimas, por exemplo… os mesmos que muitas vezes calam e engolem as (lá está) discriminações diárias de que são vítimas num dos poucos Estados europeus que não ratificou a Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais, isto apesar de deter uma das mais importantes minorias a nível mundial – precisamente a portuguesa. Ah, esta convenção foi assinada no Conselho da Europa, que fica em Estrasburgo. Mesmo que nunca venha a ser eleita deputada europeia, aconselho-lhe vivamente uma visita. Nunca é tarde para se abrir os olhos.

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